O aumento do IOF é inconstitucional?

A publicação do Decreto nº 10.797/2021 reacendeu acaloradas polêmicas sobre o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF), como amplamente divulgado pela mídia e debatido por especialistas na última semana.

Tendo acompanhado de perto alguns desses comentários, parece-nos que há espaço para algumas ponderações sobre o perfil constitucional do IOF e a possibilidade de sua alteração por decreto presidencial, tema a que dedicaremos este breve artigo.

Vamos começar analisando uma das mais repetidas afirmações sobre o IOF, a de que este imposto não poderia ter finalidade exclusivamente arrecadatória.

Imposto que não pode arrecadar é contradição de termos

O primeiro argumento para se sustentar a inconstitucionalidade do Decreto nº 10.797/2021 é que o IOF seria um imposto predominantemente extrafiscal e, consequentemente, não poderia ser utilizado com finalidade exclusivamente arrecadatória.

Ora, não há nenhum dispositivo na Constituição Federal que estabeleça restrições ao uso de impostos, quaisquer que sejam, para fins de arrecadar. Inclusive, se há uma ontologia dos impostos é que são instrumentos para arrecadação de recursos necessários para o financiamento dos gastos públicos.

Sim, todos os tributos podem, em medida maior ou menor, ser utilizados para induzir ou desincentivar comportamentos sociais, econômicos, etc. Contudo, jamais perdem a sua vocação arrecadatória.

Isso é ainda mais verdadeiro quando se consideram os impostos dentre o gênero tributos, pautados que são pela capacidade contributiva objetiva e cuja característica principal é o financiamento de gastos gerais e indivisíveis incorridos pelos entes federativos.

Portanto, é simplesmente equivocado argumentar que o aludido decreto seria inconstitucional por se ter lançado mão do IOF com aparente finalidade exclusivamente arrecadatória, como já defendemos em outra oportunidade (Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 97-105).

Há uma variação deste argumento que requer uma análise mais detida. Sustenta-se não que o IOF não poderia ser utilizado com finalidade exclusivamente arrecadatória, mas que, sendo este o caso, ele não poderia ser modificado por decreto, tendo, ainda, que observar a regra da anterioridade, já que a legalidade e a anterioridade somente seriam excepcionadas caso este imposto fosse utilizado com finalidade prioritariamente extrafiscal. Vejamos.

A Constituição Federal não estabeleceu os fins do IOF

A competência da União Federal para a instituição do IOF está prevista no inciso V do artigo 153 da Constituição Federal, sendo que o § 1º deste artigo estabelece que “é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”. A seu turno, o § 1º do artigo 150 da Constituição determina que o IOF não está sujeito às regras de anterioridade previstas nos artigos 150, III, “b” e “c”.

Este § 1º do artigo 150 tem uma redação simples e objetiva, estabelecendo que “a vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I”.

Não é necessário grande esforço interpretativo para concluirmos que não há, nos artigos 150 e 153 da Constituição Federal – como de resto em qualquer outra passagem do texto constitucional –, regra sobre que fins devem ser perseguidos para que seja legítima a majoração do IOF por ato do Poder Executivo, sem atenção às regras de anterioridade e da legalidade.

O § 1º do artigo 150 da Constituição Federal é objetivo ao estabelecer que as regras de anterioridade – nonagesimal e do exercício financeiro – não se aplicam ao IOF.

De outra parte, o § 1º do artigo 153 previu a existência de condições e limites para a alteração do IOF por ato do Executivo. Entretanto, delegou ao legislador infraconstitucional a competência para estabelecê-las, ao prever que o Poder Executivo, ao majorar o IOF, deve observar as condições e os limites previstos em lei.

Logo, não nos parece que a própria Constituição Federal tenha previsto este ou aquele objetivo para que o IOF seja majorado por decreto. O que a Constituição Federal fez foi delegar ao legislador infraconstitucional a competência para estabelecer tais condições e limites.

Portanto, também por este argumento não vislumbramos inconstitucionalidade na majoração do IOF, por decreto, mesmo que a sua finalidade seja exclusivamente arrecadatória.

Surge, então, uma terceira questão: uma vez que a Constituição Federal prevê que cabe ao legislador infraconstitucional estabelecer tais condições e limites para o aumento da alíquota do IOF sem lei, seria o Decreto nº 10.797/2021 ilegal?

Sobre a ilegalidade do Decreto nº 10.797/2021

O Código Tributário Nacional (CTN), ao tratar do IOF, estabelece, em seu artigo 65, que “o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou as bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária”. (Destaque nosso)

Por sua vez, o artigo 1º da Lei nº 8.894/1994 estabelece as alíquotas máximas do IOF. Segundo o § 2º deste artigo, “o Poder Executivo, obedecidos os limites máximos fixados neste artigo, poderá alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal”. (Destaque nosso)

Uma primeira questão que surge é: seria o § 2º do artigo 1º da Lei nº 8.894/1994 compatível com o CTN, ao estabelecer os objetivos da “política fiscal” como fundamento para a alteração da alíquota do IOF?

Parece-nos haver bons argumentos para sustentar que o legislador ordinário estaria, neste caso, pautado pelo critério estabelecido no CTN e, consequentemente, a “política monetária” seria o único critério legitimador da alteração do IOF neste caso.

Nota-se que a redação deste § 2º é certamente vaga e imprecisa. Se “política monetária” é um conceito mais restrito, por estar relacionado a ações relativas à moeda e a sua circulação, podendo ser buscado na Lei nº 4.595/1964, que “dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências”, a expressão “política fiscal” é demasiado ampla.

Seria possível argumentar que a “política fiscal” brasileira seria encontrada nas leis orçamentárias, especialmente no plano plurianual e na lei de diretrizes orçamentárias. Contudo, esta interpretação abriria espaço para uma utilização ampla do IOF, sem respeito à legalidade e à anterioridade, para custear qualquer despesa pública prevista nas leis orçamentárias.

Uma outra possibilidade é que se interprete “política fiscal” no sentido de utilização extrafiscal do tributo. Nessa linha de ideias, seria o seu manejo extrafiscal que legitimaria a dispensa de lei e da anterioridade para a elevação da alíquota do IOF. Esta interpretação é certamente mais alinhada com os princípios e balizas do Sistema Tributário Nacional.

A consequência do que vimos até aqui é que a utilização de um decreto, sem respeito à anterioridade, para majoração do IOF, com finalidades meramente arrecadatórias, não parece encontrar fundamento no artigo 65 do CTN e no § 2º do artigo 1º da Lei nº 8.894/1994, havendo bons argumentos para se argumentar pela sua ilegalidade.

Se esta conclusão está correta, teríamos aqui uma inconstitucionalidade meramente reflexa. Não se trata de violação direta ao texto constitucional, mas sim de ilegalidade, de não observância de norma infraconstitucional e não de violação da Constituição Federal.

Se há inconstitucionalidade é por falta de motivação

Ao analisarmos este tema em livro publicado em 2020, defendemos que o exercício da autorização constitucional para alteração do IOF por decreto deveria sempre ser motivado (Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. Belo Horizonte: Letramento, 2020. p. 101-102). Afinal, é impossível saber se o decreto concreto está ou não alinhado às políticas monetária e/ou fiscal sem saber quais foram seus motivos.

Se há uma inconstitucionalidade no Decreto nº 10.797/2021, não é ter finalidade meramente arrecadatória, não é ter ignorado a legalidade e a anterioridade mesmo sem ter finalidade extrafiscal identificável, mas sim falta de motivação deste ato administrativo normativo, que simplesmente impede que se verifique se as condições e limites previstos no artigo 65 do CTN e no § 2º do artigo 1º da Lei nº 8.894/1994 foram observados.

Este, segundo nos parece, é o único tema relacionado a este debate que remete à Constituição Federal. No mais, teríamos uma discussão sobre (i)legalidade. É importante que os Tribunais sejam provocados para que possamos avançar nessa discussão.

Surpreende que, com mais de três décadas de vigência da Constituição de 1988, não tenhamos balizas claras para que o Poder Executivo possa exercer as competências que lhe foram delegadas no âmbito do IOF, do Imposto sobre Produtos Industrializados, do Imposto de Importação e do Imposto de Exportação. Contudo, a questão deve ser levada ao Poder Judiciário de forma apropriada. Nem tudo é questão constitucional.

Fonte: Jota