Não cumulatividade e desenvolvimento econômico

A reforma tributária foi aprovada prometendo uma não cumulatividade plena, isto é, os tributos incidentes em cada etapa do processo produtivo serão abatidos dos tributos devidos na etapa subsequente, à exceção daqueles incidentes na aquisição de produtos destinado ao uso e consumo pessoal, vide artigo 156-A da Constituição, inserido pela EC 132/2023.

A não cumulatividade é uma técnica da arrecadação tributária aplicada, em geral, ao longo de uma cadeia produtiva. Como se sabe, a produção de determinado produto se divide em várias etapas. Quanto mais sofisticado o produto, mais etapas são necessárias para a sua produção.

Em cada uma dessas etapas são transacionados bens e serviços que servirão para a realização do produto final. Em cada uma dessas transações incidem os tributos pertinentes, seja sobre a etapa de produção da que adquire, seja sobre o faturamento daquele que aliena.

A não cumulatividade permite que o tributo cobrado numa dessas etapas seja compensado pelo tributos recolhido na etapa anterior, de modo a não haver a cobrança de tributo sobre tributo.

Ao contrário do que alguns podem pensar, a não cumulatividade não é um favor ou benesse de governo A ou B, antes tem assento constitucional, encontrando previsão no inciso I, §2º do artigo 153 (para o IPI), inciso I, § 2º, do artigo 155 (para o ICMS), §12 do artigo 195 (para as contribuições ao PIS e à Cofins) e — atualmente, após as inovações inseridas pela reforma tributária — artigos 156 – A, inc. VIII (para o IBS) e artigo 195, inciso V, §16 (para a CBS). É, portanto, direito do contribuinte.

O assento constitucional se justifica em razão da dinâmica de incentivos de desincentivos que a técnica da não cumulatividade pode gerar na produção e economia nacionais.

Como dito acima, quanto mais complexo e sofisticado é um produto ou serviço, maior tende a ser o número de etapas necessárias à sua conclusão. Isso ocorre porque dificilmente uma empresa conseguirá fazer várias partes diferentes que, ao final, integrarão o mesmo produto. Se o fizer, certamente sacrificará a especialização, refino e aprimoramento daquelas várias partes.

Sob o ponto de vista econômico, é mais vantajoso que uma empresa se especialize num determinado segmento da cadeia produtiva, fabricando poucos produtos mas com alto grau de especialidade, investindo em pesquisas, ganhos de eficiência, aprimorando aquele componente que, ao final da cadeia, integrará o produto acabado — desenvolvendo assim aquele segmento.

Crédito em etapas seguintes de produção

A não cumulatividade privilegia a horizontalização da cadeia de produção, pois permite que as empresas se dediquem e se especializem em segmentos diversos e específicos de uma mesma cadeia. Assim, um ciclo produtivo pode se desdobrar em várias etapas, e o tributo incidente em cada uma dessas etapas gera um crédito a ser aproveitado pelo adquirente na etapa seguinte.

Do contrário, as empresas tenderiam a concentrar a produção em poucas etapas, dividindo o foco em várias frentes, o que demandaria know how em diversas áreas, algo muito difícil para qualquer empresa — tudo isso visando economia de tributos. Essa verticalização certamente sacrificaria a eficiência do produto final.

O resultado seria produtos cada vez mais simplórios, sem tecnologia embargada, sem competitividade, defasados perante seus concorrentes internacionais, levando em empresas brasileiras a perderem ainda mais relevância no comércio internacional.

Os prejuízos certamente não ficariam restritos ao cenário internacional. Internamente, os produtos nacionais — defasados em razão de incentivos nefastos introduzidos por políticas fiscais mal pensadas, ou pensadas apenas sob o viés da arrecadação — perderiam espaço perante os importados, que, chegando aqui prontos ou quase prontos, passariam ainda por poucas ou nenhuma etapa do ciclo produtivo, não sofrendo outras cobranças tributárias, chegando ao consumidor final consideravelmente mais baratos.

Como se vê, o princípio da não cumulatividade não é favor concedido por governos, é direito do contribuinte, que já encontrava assento constitucional e que foi reforçado pela EC 132/2023. Tem o potencial de alavancar a produtividade das empresas, podendo oportunizar o surgimento de produtos e serviços mais sofisticados e portanto mais caros.

A riqueza oriunda da comercialização de tais produtos e serviços é melhor distribuída ao longo da cadeia, graças ao relativo grau de sofisticação necessário em cada etapa. O resultado seria a criação de mais empregos e empregos que pagam melhores salários.

Portanto, é preciso levar o princípio da não cumulatividade à sério, não se podendo admitir mecanismos criados na intenção de mitigá-lo, como tem ocorrido sistematicamente com o ICMS, que foi criado e será extinto sem que a sua não cumulatividade seja implementada totalmente.

O respeito ao princípio citado certamente contribuirá para o ressurgimento de uma economia novamente pujante, inovadora, que crie e assome novas tecnologias e que gere transformação, ganhos de escala e de mercados internacionais. Do contrário, o seu desrespeito resultará em perda de eficiência, competitividade, relegando-nos a uma economia limitada à extração, manufatura e commodities.

Não à toa, vê-se nas últimas décadas uma redução significativa da indústria nacional, com o fechamento de montadoras de carros, encolhimento da indústria de transformação, fechamento de postos de trabalho ligados ao setor industrial e a redução da participação desse setor na composição do PIB.

Tal fenômeno se deve a inúmeras causas e a política tributária, longe de ser a única, certamente está entre as principais delas.

FONTE: https://www.conjur.com.br/2024-jul-01/nao-cumulatividade-e-desenvolvimento-economico/