Deslocamento da competência para julgar ITR do Carf para conselhos de 1.418 municípios
A reforma do contencioso administrativo está em alta com o anúncio da criação do Conselho Tributário do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) [1], mudança esta que ofuscou uma outra mais tímida — mas não irrelevante no contexto do contencioso fiscal e do pacto federativo —, trazida pela Medida Provisória nº 1.227 de 2024 [2], que desloca a competência para julgar o ITR (imposto territorial rural), que antes era da União, para o município nas hipóteses em que este possua convênio vigente para fiscalizar e cobrar o tributo.
Essa alteração, em princípio, pode ser vista como uma harmonização do contencioso administrativo às regras constitucionais que conferem capacidade ativa ao município para fiscalizar e cobrar o ITR, questão que faz um certo sentido dentro do contexto do pacto federativo e até mesmo da operacionalização da atividade de cobrança.
Não obstante, essa medida pode prejudicar os contribuintes com a fragmentação do contencioso administrativo sobre o tema, com impactos operacionais e financeiros para a condução das defesas administrativas, além de ser menos previsível o desfecho dos processos sobre a matéria julgadas por múltiplos conselhos municipais, o que resulta em potencial prejuízo para a estabilidade da jurisprudência administrativa sobre o mesmo tributo.
Primeiro, deve-se destacar que a própria Constituição confere capacidade tributária ativa aos municípios que optarem pela fiscalização e cobrança do ITR, conforme disposto no artigo 153, § 4º, inciso III. Assim, embora a competência tributária para legislar em matéria de ITR permaneça com a União, não será esta quem irá autuar o contribuinte pelo não pagamento do tributo na hipótese em que o município exerça a opção de fiscalizar e cobrar[3].
Essa questão se torna relevante, pois o artigo 158 da Constituição, em seu inciso II, prevê duas regras sobre a repartição de receitas do ITR. Na primeira, metade da receita do ITR será repassada ao município referente às glebas nele situadas, sem nenhuma contrapartida. Na segunda, caso o município exerça a opção constitucional para fiscalizar e cobrar o ITR, a integralidade da receita será de sua titularidade.
Assim, com base em um raciocínio oriundo do pacto federativo, assumindo que o papel do contencioso administrativo é de revisar o lançamento, realmente é estranho o Ministério da Fazenda ser incumbido a julgar autos de infração que tenham sido lavrados por municípios, cujo proveito econômico da arrecadação será integralmente destes.
Neste contexto, a justificativa adotada pela Medida Provisória nº 1.227 de 2024 para explicar a alteração de competência de julgamento dos processos de ITR é que estes compõem atualmente cerca de 2,78% do acervo de processos das Delegacias Regionais de Julgamento. Além disso, perceberam uma lacuna na legislação no tocante à delegação do contencioso administrativo para julgar os processos de ITR nos casos em que o município exercer a opção pela capacidade tributária ativa, visto que a redação original do artigo 1º da Lei 11.250 de 2005 apenas conferia autorização para que estes fiscalizassem e lavrassem autos de infração.
Embora não exista qualquer urgência sobre a matéria ou justificativa explícita para sua veiculação na exposição de motivos da referida medida provisória, há um sentido para que a União queira se desfazer de parte de seu estoque de processos no contencioso administrativo que não foram lavrados por auditores fiscais da Receita Federal do Brasil (RFB) e cujo proveito econômico será cobrado exclusivamente pelo município em que a gleba esteja situada.
Trata-se de um custo morto para a União que não se justifica pela análise do pacto federativo, visto que o contencioso administrativo está entre a fase de fiscalização e cobrança do crédito tributário, sendo um requisito imprescindível para sua legitimidade constitucional.
É importante destacar que, embora para a União essa “redução de custo” seja bem-vinda — ainda que possa parecer pouco expressiva no contexto da meta orçamentária do governo federal —, além de impactar os 1418 municípios conveniados[4], possivelmente terá impacto negativo para os contribuintes de ITR neles situados.
O potencial problema aqui diz respeito, primeiro, à inexistência de uma norma que preveja as regras gerais do processo administrativo nacional e, com isso, cada ente é responsável por legislar sobre seu próprio processo administrativo fiscal. Assim, existem formas diversas no tocante ao controle de intimações, contagem de prazo, possibilidades recursais e até mesmo no tocante ao acesso aos autos, questões que poderiam ser dirimidas com uma regra geral para todo o contencioso administrativo nacional e que, repartidas por 1418 normas, trará uma complexidade adicional ao contribuinte de ITR.
Dificuldade financeira de municípios
Para além disso, não se pode esquecer que os municípios são os entes federados mais frágeis no contexto do federalismo brasileiro. A Confederação Nacional de Municípios (CMN) emitiu em 2023 um relatório em que alertava a dificuldade financeira destes entes federados, pois 51% das cidades estavam com as “contas no vermelho”[5], questão que impacta nas estruturas de fiscalização e julgamento do contencioso administrativo.
Assim, os contribuintes, que antes tinham no contencioso federal a revisão dos autos de infração de ITR, agora serão surpreendidos com um novo contencioso administrativo, agora em âmbito municipal, que implicará em aumento dos custos para a condução da defesa, e em possíveis dificuldades operacionais no tocante à protocolo de petição e apresentação de recursos, além da dificuldade de encontrar os atos normativos que, muitas vezes, não estão disponíveis em meio eletrônico (sobretudo de cidades mais afastadas dos centros urbanos).
É importante refletir acerca da efetividade deste novo contencioso frente à estrutura atual do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Isso, pois embora o contencioso administrativo federal seja uma referência aos demais entes federados e assegure a ampla defesa e contraditório com dupla instância de julgamento paritária, não se sabe se os 1418 municípios conveniados possuem estrutura apta a assegurar um contencioso administrativo com respeito às garantias constitucionais dos contribuintes.
Ademais, outro aspecto que não pode ser olvidado diz respeito à reforma do contencioso administrativo estadual e municipal pela reforma tributária, pois o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), tributo que substituirá também Imposto Sobre Serviços (ISS), será julgado pelo Conselho Tributário do IBS, o que retira um dos tributos mais relevantes para a receita dos municípios[6] da esfera de competência dos conselhos municipais.
Assim, será que a retirada do ISS da competência de julgamento dos conselhos municipais destes 1418 municípios terá o condão de impactar no investimento que justifica sua manutenção e modernização? Ou será que exatamente por ocorrer esse esvaziamento da competência de julgamento dos conselhos é que a União decidiu regulamentar a questão da competência para julgamento do ITR e delegá-la aos municípios conveniados, justificando assim a sua manutenção?
Uma última reflexão diz respeito ao que será feito caso os municípios conveniados não aceitem a incumbência de assumir o contencioso administrativo de ITR. Será que a União poderá exigir destes a compensação financeira pelos custos do julgamento dos processos de ITR ao exercer a competência supletiva de julgamento?
A União parece estar levando o ITR a sério[7], ainda que o foco não seja a arrecadação, mas sim o custo do seu contencioso para recuperar um crédito que não é de sua titularidade. Basta agora aguardar as 1418 cenas dos próximos capítulos para avaliar a extensão do impacto negativo desta medida no tocante à arrecadação de municípios que dependam da arrecadação do ITR.